segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Sobre transposição do São Francisco

Temos assitido nos últimos dias uma disputa demagógica e esquizofrênica para saber quem é o maior defensor do rio São Francisco. O pior é que nesse assunto todos calçam 44. Onde estavam essas figuras quando projetos aventureiros e fracassados como o Califórnia e Platô de Neópolis tiravam água do rio para aguar pés de quiabos e coqueiros?  E os esgotos que são jogados no rio, de Canindé a Brejo Grande, quem já fez alguma coisa para evitar isso? Aliás, um ex-governador que luta para ser o primeiro defensor do Velho Chico já escreveu até um livro defendendo sua transposição. Como sabe que ninguém lê o que ele escreve...  A seu favor o fato de os seus concorrentes nessa corrida maluca, todos, terem feito menos do que ele. Para o bem e para o mal.
Como Sergipe não é feito apenas por demagogos e esquizofrênicos e numa prova de que aqui também temos vida inteligante, reproduzimos abaixo artigo do agrônomo Ailton Francisco Rocha sobre o assunto.

Quem tem medo da transposição?


Após ter participado como consultor junto a Agência Nacional de Águas na elaboração do Programa de Ações Estratégicas e no Plano Decenal de Recursos da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, venho acompanhando pela imprensa, na lista de discussão da Associação Brasileira de Recursos Hídricos na internet e através de palestras, o projeto de transposição de águas do rio São Francisco como querem chamar alguns ou de sustentabilidade hídrica como preferem outros, atualmente contemplado no Programa de Desenvolvimento Sustentável do Semi-Árido e da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco.

É sabido que a distribuição das fontes de água no nosso país é desigual. Enquanto a Amazônia, com cerca de 10% da população brasileira, detém 70% da disponibilidade da água doce do País, o Nordeste, com 30% da população nacional, dispõe de apenas 3% de toda a água doce do Brasil. Essa desigualdade é também flagrante no próprio Nordeste. Senão vejamos: a bacia do São Francisco concentra 63% da disponibilidade de água da região nordestina; a bacia do rio Parnaíba (Piauí/Maranhão) detém 15% da água disponível no Nordeste. Portanto, essas duas bacias dispõem de 78% das disponibilidades de água da região. Por sua vez, as bacias dos rios intermitentes nordestinos detêm apenas 22% da água disponível, os quais se concentram em alguns açudes estratégicos de grande porte e em aqüíferos profundos próximos à Zona Costeira. Em compensação, 2/3 da população residente estimada para 2025 vivem justamente nessas bacias deficitárias.

Essa concentração de população em uma área com pouca água cria sérios problemas econômicos e sociais. A disponibilidade hídrica per capita é inferior ao índice crítico de 1.000 m³/hab/ano, indicado pelas Nações Unidas como o mínimo para garantir a vida humana e a preservação ambiental. Nas bacias do São Francisco e do Parnaíba, esse índice é da ordem de 2.000 m³/hab/ano para a população estimada para o ano 2025. Nas bacias dos rios intermitentes, o índice já é, hoje, inferior a 1.000 m³/hab/ano, e tende para 500 m³/hab/ano ou menos, no ano 2025. Para que haja desenvolvimento sustentável equilibrado e harmônico na Região do Polígono das Secas, será necessário distribuir melhor a água local entre a população, integrando as bacias superavitárias às bacias deficitárias, além de construir os projetos de distribuição interna da água em cada sub-região. A situação hídrica do Nordeste Setentrional é agravada, ainda, pela maior probabilidade de ocorrência de secas, levando a crises sociais e econômicas periódicas, que acarretam pobreza, migrações e falta de competitividade econômica.

A água dos rios intermitentes do semi-árido setentrional já é armazenada em grandes açudes, mas investe-se muito nessas obras para disponibilizar relativamente pouca água. Para cada m³ de água disponibilizado, perdem-se 3 m³ por evaporação e vertimento (sangramento) nos açudes. Além disso, não há mais a possibilidade de guardar água nas bacias com novos açudes. O que poderá ocorrer, em muitas bacias, é que a construção de novos açudes necessários para distribuir água no território acabará causando mais perdas de água por evaporação, reduzindo a água disponível no conjunto da bacia.

A opção pela captação de água em lençóis subterrâneos por meio de poços é viável, mas limitada ao volume renovável e só pode ser feita basicamente nos terrenos sedimentares permeáveis, que ocorrem em apenas cerca de 30% do Polígono das Secas, e de forma concentrada na zona costeira e no Estado do Piauí.

A coleta de água da chuva em cisternas garante água para beber no meio rural, para a população dispersa, para a qual, em geral, não se viabilizam longas adutoras, de alto custo, para atender a poucas pessoas. As cisternas, entretanto, não produzem modificações estruturais nem a inserção econômica da população rural nas condições modernas de vida. O uso de cisternas é válido numa conjuntura emergencial, mas muito precário se for à única fonte de água permanente.

A solução dos problemas crônicos do semi-árido depende de fato de seu principal manancial hídrico, que é o Rio São Francisco, embora outras fontes de água possam ajudar. Ainda assim, essas fontes não substituem o Velho Chico, que deve ser o manancial complementar da região, na medida das necessidades de cada área, porque é a fonte hídrica mais próxima e de grande volume.

A integração do Rio São Francisco às bacias dos rios intermitentes do semi-árido será possível com a retirada contínua de 26 metros cúbicos de água por segundo - ou 1% da vazão garantida pela barragem de Sobradinho - que serão destinados ao consumo humano e animal nos municípios do agreste e dos sertões dos Estados de Pernambuco, da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Ceará. Volume superior a esse - 63 m³/s em média - para múltiplos usos só acontecerá nos anos hidrologicamente favoráveis, quando a barragem de Sobradinho estiver cheia, e somente nesta situação.

A tecnologia de transposição já vem sendo adotada em inúmeros países como África do Sul/Lesoto, Egito, Equador, Peru, China, Espanha e EUA, interligando bacias superavitárias às bacias deficitárias. No Brasil, essa mesma tecnologia é usada em grandes sistemas de abastecimento de água em regiões metropolitanas (exemplos: São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Brasília).

Para garantir a multiplicidade do uso da água do rio São Francisco, inclusive a navegabilidade e a integração de bacias hidrográficas, assegurando maior flexibilidade na operação de Sobradinho será necessário trabalhar a construção de um “pacto da água” com o propósito de padronizar os procedimentos de outorga, que proporcionarão um maior disciplinamento do uso da água, principalmente nos afluentes mineiros e baianos que são a verdadeira caixa da água, com definição das regras para o uso sustentado dos seus recursos hídricos que irá contribuir para a soma e integração de esforços, evitando a fragmentação da gestão.

Atualmente estas ações são possíveis de serem efetivadas em virtude de termos os sistemas de gerenciamento de recursos hídricos implantados e devidamente regulamentados, tanto a nível nacional como a nível dos estados que compõem a bacia hidrográfica do rio São Francisco.

Quanto a revitalização da bacia hidrográfica do rio São Francisco, sabemos que dentre vários problemas, três são os que mais requerem ações emergentes: poluição, desmatamento e socialização do uso da água.

Para enfrentar estas questões, as três esferas de governo (municipal, estadual e federal) e o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco dispõem de uma ferramenta valiosíssima que é o Plano Decenal de Recursos Hídricos, no qual foram estimados para os próximos dez anos cerca de R$ 5,2 bilhões de reais, assim distribuídos: R$ 4,36 bilhões para serviços e obras de saneamento ambiental, R$ 465 milhões para sustentabilidade hídrica no semi-árido, R$ 142 milhões para uso sustentável dos recursos hídricos e recuperação ambiental e R$ 128 milhões para serviços e obras de recursos hídricos e uso da terra. As distribuições destes recursos poderão advir dos orçamentos estaduais e federal, da compensação hidroenergética, das concessionárias de serviço público e da cobrança pelo uso da água.

Neste sentido, poderiam ser priorizadas ações voltadas para o saneamento básico (acesso à água, tratamento de esgoto e de resíduos sólidos), mudança da matriz energética no Estado de Minas Gerais, com a substituição do carvão vegetal pelo gás natural e disciplinamento da mineração, por exemplo, e proteção e recuperação das áreas de preservação permanente, principalmente àquelas situadas nas nascentes dos principias afluentes do rio São Francisco e na região estuarina.

Ailton Francisco Rocha - Presidente do Fórum Pensar Cedro

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