quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Amaral na Academia

Olha aí mais uma obra prima de Amaral Cavalcanti, poeta, cronista e jornalista dos melhores. Da safra de "De bar em bar" a vez do Gosto Gostoso, o bar de uma geração de sonhadores tão bem descrita por Amaral nesta crônica. Eis porque o nosso querido poeta merece um lugar na Academia Sergipana de Letras. Boa leitura. 

O Gosto Gostoso


Era o bar da guerrilha citadina, o aparelho dos descontentes, o bar dos descolados. Bar de ativistas políticos sabe-se como é: pega pelo paladar e sai juntando consciências, misturando sonhos e indignações. Daqui a pouco o que há de gente contra tudo resta lá, agregados e solidários, com seus hinos varonis, seus regimentos internos, suas palavras de ordem, cada quem na sua tribuna, embriagados de esperança. Bar assim ainda há, mas sem o civismo dos anos oitenta. Hoje, abrigam tribos difusas, ora faschion, ora babacas demais. O Gosto Gostoso não! Foi lá onde o PCB se homiziou para doutrinar a moçada, foi lá onde o PT bebeu adolescente e se fez homem, foi lá onde cuidamos de brigar por esta situação nova que está ai.

Naquele tempo todos ostentavam um orgulho estóico, revolucionários dos pés às cabeças: desde as barbas do Profeta ao livro de Mao, desde o perfil cacheado de Tchê Guevara ao movimento das “Diretas Já”. Concedeu-se até aos meninos calçar sapatilhas e vestir camisetas Isadora Ducan - os machos já cuidando de reprocessar suas cantadas ao modo novo de conquistar as mulé - companheiras inteligentes e revolucionárias, agora tão libertárias e informadas.

Ia-se no Gosto Gostoso porque era lá que a subversão funcionava, onde se controvertia os decretos e, sem pudores burgueses, dava-se um jeito no mundo, mandava-se às favas a ditadura. Pois bem... o mundo retornava madrugada alta nos rabiscos da conta, no bocejo do garçom, na traição do sol clareando tudo. Tinha-mos que voltar pra casa sem a maquiagem de guerra porque os vizinhos não nos conheciam assim: “Corina tem um filho comunista, coitada, e além do mais, ele fuma maconha!” E me olhavam de soslaio, embevecidos de mim - a coisa nova da rua.

Pois não é que virou obrigação a quem se quisesse engajado freqüentar o Gosto Gostoso? Ficava no Bairro Grageru, fim da cidade, porque dali não se ia mais a lugar nenhum - que não havia estrada. O fim de linha estava a cem metros do Bar, no Conjunto Habitacional “Cidade dos Funcionários”, construído na década de sessenta pelo governador Seixas Dórea. Uma novidade urbanística de forma circular com ruas paralelas e concêntricas circundando uma pracinha de capim, casinhas de pombo em formato igual, paredes frágeis e teto de amianto, certamente planejada por um engenheiro modernoso, metido a inovador. Na primeira vez que fui lá me senti “preá de bazar”, zonzo, sem saber em que casa entrava. Depois dali, era só um imenso quintal de manjelões e goiabas e cajus, fogo-pagôs e riachos. Ai meu Deus, que saudade gulosa!

Voltemos ao Gosto Gostoso. Principalmente na quarta-feira, o bar se estendia pelo asfalto, mesinhas de ferro atravancando a rua. Uma multidão barulhenta catando mesa, não dava para quem queria.

Comia-se bem, no Bar do Fernandinho. A delícia principal era a Maniçoba, manjar pra macho enfrentar sem titubeio, feito de folhas de Manaíba, venenosas, se não fossem tratadas com os centenários cuidados que só o povo de Lagarto guardara confiavelmente. Fernandinho - lagartense nas glórias de Aracaju - se responsabilizava: “O veneno a gente tira numa bôa!”. Mas tinha também tripa se porco torrada, frango à passarinha e um supremo Sarapatel, servidos com proficiências de avó, que davam pra três. Afinal, os proprietários, que nunca ficaram ricos, tinham aquilo mais como um aparelho político, eles mesmos, os donos, festejados próceres do PT recém criado.

Fotografemos o bar: um mar de cavanhaques trotskanos, aqui acolá uma camisa florida para relaxar; barbudos pálidos e monossilábicos, senhores graves - plenos de sabedoria - e adolescentes imberbes se chegando à causa com ouvidos complacentes, ávidos de justiça e festa.

Notável também eram as bolsas de coro cru a tiracolo. Cada quem carregava nelas o seu arsenal bélico. Vai que dali, daquela noitada, o mundo se rebelasse! “Companheiros! Vamos conquistar a história”! O conteúdo das bolsas seria bastante munição: livros malditos, folhas soltas com desenhos malucos, diários guevarianos, manifestos, a última edição de Carlos Zéfiro e, lá no fundo perfumando tudo, o providencial baseado que ninguém é de ferro! O barato da maconha era a sustança da guerra! Vida, justiça e sofreguidão, acho que éramos todos assim, tão belos e revolucionários o quanto nos permitia a cidade.

Afinal, no Gosto Gostoso, a vida em Aracaju era um chuá chuá de inteligentes conversas. Sem ele, a nossa história seria outra.

Amaral Cavalcante – 27/03/2009.
















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